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Parte da paisage

Ed. Iluminuras, Brasil, 2014

 

"A poesia de Adriana Lisboa está engastada na tradição de uma lírica que não abdica da lucidez para a constituição da memória sensível. Seu discurso é marcado pela implacabilidade de julgamento e de auto-julgamento." (Alcides Villaça, O Estado de São Paulo)

 

"Adriana nos dá (...) uma breve lição de poesia - estranha lição sem instruções e sem advertências, que é só sugestão e entrega. Uma poesia que não teme o parcial. Que não se esquiva das coisas que desconhecemos e que ela, com forças limitadas, não pode ter. É bela essa paisagem parcial, mas fértil, que a poeta nos oferece. Luz e sombra. Presença e ausência. Movimento e estagnação. Tudo em constante mudança, uma deliciosa armadilha. Como a vida, enfim, se disfarça e avança." (José Castello, O Globo)

 

"Entre a palavra e o silêncio transita o ensaio de vozes que dialogam entre si, aproximando tempos e espaços, aparentemente, distanciados. É quando a poesia flui 'testando a voz' de um sujeito lírico despretensioso, mas atento ao seu tempo e a outras vozes que alimentam sonhos e sentidos precários, mas indispensáveis para se seguir adiante." (Vilma Costa, Rascunho)

 

 

 

 

 

Leonard

 

Duas mãos, dois hemisférios

cerebrais, quatro cavidades cardíacas,

um par de ouvidos perplexos,

mais de duzentos ossos (três deles quebrados)

e o sentimento do mundo. Algo

acontecendo em segredo, e o cerco

da neblina em torno de velhas convicções.

Um quarto de hotel ou mosteiro,

o zazen informal de uma corda

dedilhada ou do gelo tilintando no copo.

Um resto de elegância, Leonard,

e de loucura. O tempo que escorre,

este dar-se conta.

 

Pescaria

                                     com Clarice

 

Como nas festas juninas da infância

quando pescávamos peixes de papel

na areia, e prêmios nos peixes:

lançar-me isca à pescaria

do poema

no poema

mesmo que ele seja como a alma úmida do peixe vivo

que a real pescaria desmente.

Papelaria União

                                    

Era onde eu comprava os meus cadernos.

O centro da cidade era o nosso quintal.

Você fotografava os gatos e

os cartazes nos postes de luz da Cinelândia.

Havia em nós uma modéstia

quase arriscada, quase

imodesta. De muito pouco

dependia a nossa sobrevivência: tempo,

música, filmes. Ruas de paralelepípedos.

Por sugestão sua,

eu comprava os meus cadernos

na Papelaria União. Anotava

ali nosso futuro em versos

verdes, duma confiança irrefletida.

Não notava a prudência

clarividente das folhas já amareladas,

de outono, de antemão.

Mãe

 

Sem você é como se a casa

se insubordinasse –

ninguém ajeitou o pano da pia

nem as almofadas do sofá,

e aqueles frascos

estão disseminados sobre a cômoda

feito personagens tímidos

numa festa onde não conhecem ninguém.

Quando mais cedo você

segurou a minha mão

nas suas mãos machucadas

e me fez a pergunta à qual respondi

que sim

(será que eu vou ficar boa?)

estreávamos um outro tempo,

eu sei:

um tempo em que talvez já não importem

o pano da pia

nem as almofadas do sofá.

Mas que outra disciplina conhecemos?

Que outra fórmula

para o que nos desvestiu das fórmulas?

Então vou lá e ajeito

o pano da pia

e as almofadas do sofá,

por nada,

por acaso,

por amor.

Alguns poemas do livro foram traduzidos ao inglês por Alison Entrekin e publicados em Modern Poetry in Translation, The Missing Slate, Sonofabook e outras revistas e websites.

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